A Pressa que Mata Motociclistas de Aplicativo
A pressão por entregas rápidas, incentivada pela cultura do “corre que estou atrasado”, transfere o risco de atividade para o trabalhador, que arca com R$ 400 em equipamentos e sofre a exclusão após um sinistro
O grito do cliente impaciente, transformado em texto na tela do aplicativo, se tornou o gatilho para a velocidade nas vias. Para motociclistas como Felipe de Andrade Xavier, 23 anos, a famosa frase "corre que estou atrasado(a)" é uma pressão constante que influencia sua pilotagem. O próprio Felipe confessa que, "quando dar pra esticar, sempre estico", mostrando como a urgência imposta pela busca por uma boa avaliação e pela taxa de entrega mais rápida exige a segurança.
Essa dinâmica de trabalho, impulsionada pelo crescimento exponencial da frota de motocicletas, tem uma consequência brutal no trânsito. Em Salvador, as motos já representam cerca de 56% das vítimas fatais. Em todo o estado da Bahia, os motociclistas somaram 44,5% das vítimas fatais de acidentes de transporte terrestre em 2023, e em 2024 foram registradas 12.888 internações por acidentes de moto.
O Modelo de Negócio que Transfere a Conta
O modelo de trabalho por aplicativo, que depende dessa velocidade para funcionar, foi desenhado de forma a transferir o "custo do risco" integralmente para o trabalhador.
Paulo Cezar Ribeiro da Costa, advogado trabalhista do escritório Costa & Góes Mascarenhas Advogados Associados, explica que as plataformas se qualificam como "empresas de tecnologia" que apenas intermedeiam a relação, buscando eximir-se de qualquer responsabilidade trabalhista ou consumerista.
“No caso das empresas que operam entregas, elas transferem parte significativa do risco do negócio, sob dois aspectos importantes, o trabalhista e o consumerista”.
A relação é de evidente desequilíbrio:
- O motociclista, chamado de "parceiro", suporta todos os gastos: manutenção, aluguel da moto, combustível e até multas de trânsito. Felipe estima gastar cerca de R$ 400 a 500 apenas com equipamentos de segurança (capacete, capa de chuva, etc.), enquanto as taxas de corrida têm sido reduzidas.
- Apesar da atividade ser de risco reconhecido pela norma trabalhista, as plataformas não conseguem realizar recolhimentos previdenciários (INSS/FGTS) ou pagar benefícios como adicional de periculosidade ou plano de saúde.
A Tragédia do Risco Terceirizado
A ausência de segurança na ponta da linha de produção se traduz em tragédia familiar quando o acidente ocorre. Kléber Roberto Cruz Dos Santos, motociclista, relata um acidente que aconteceu enquanto estava parado, atingido por outro motociclista em alta velocidade e na contramão "Minha esposa fraturou o fêmur, ficou 5 meses acamada, foi o pior ano da nossa vida, fiquei muito triste e com raiva", conta Kléber.
O drama é ainda maior para o trabalhador que depende exclusivamente da motocicleta para se sustentar. Segundo o advogado Paulo Cezar: “Nesses casos [de acidente], não há qualquer tipo de compensação ou assistência e a plataforma ou substituição por outro”.
Isso se torna um problema social, pois a tragédia resulta em uma redução drástica da renda do trabalhador, sem que ele consiga compensá-la, por estar incapacitado.
As empresas de aplicativo destacam prioridade à segurança. O iFood declara ter criado a área "Visão Zero" em 2024 para fortalecer ações de segurança e afirma que suas rotas, traçadas por Inteligência Artificial, respeitam o limite de velocidade das vias. A empresa também menciona cobertura de seguros, capacitação e assistência à saúde.
A Uber também afirma que sua prioridade é a segurança e que oferece seguro para acidentes que cobre até R$ 100 mil em caso de morte acidental ou invalidez permanente.
No entanto, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem cerca de 625 ações ou procedimentos contra plataformas de entrega no Brasil, debatendo a subnotificação de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho.
O advogado Paulo Cezar Ribeiro da Costa conclui que a eficiência e a rapidez não podem ser compensações de prejuízo. A questão da saúde e risco no trânsito é uma questão que afeta toda a sociedade.
Ele sugere que o Estado deve impor soluções às plataformas, como uma ferramenta de tecnologia de informação que integre as empresas aos órgãos fiscalizadores de trânsito, a fim de controlar limites de velocidade dos entregadores.
O debate sobre a natureza da relação de trabalho entre plataformas e entregadores está em discussão no STF, mas, no cotidiano das ruas, a lição de Kléber serve como alerta: o risco está à espera, e a pressa do aplicativo pode custar a vida ou a capacidade produtiva do trabalhador, que será rapidamente substituída



Redação 








